SOB O SOL DA TOSCANA: UMA TRAJETÓRIA DE TRANSFORMAÇÃO
Christopher Augusto Carnieri ¹
A Torre
A primeira cena do filme começa no coquetel de lançamento do primeiro livro de um de seus alunos. Frances (Diane Lane), escritora e crítica literária, aparece feliz e em controle da sua própria vida. Há um ar de inocência. Porém, esta harmonia é quebrada quando, durante um conversa, ela recebe uma indireta maldosa de um dos convidados. Após receber uma crítica negativa assinada por Frances, um romancista deixa no ar uma suspeita sobre a fidelidade do seu marido.
Logo em seguida há um salto no tempo e ela se encontra no escritório do advogado tentando processar os detalhes da separação. O contexto é bem diferente da cena anterior. O sentimento é de colapso e devastação. Então o advogado fala uma frase que anuncia a jornada que será trilhada pela protagonista: “Um dia você será feliz novamente”. Considerando a jornada arquetípica do Tarot, o arcano da Torre representa as mudanças dramáticas, a ruína, o colapso de uma estrutura, mas também, a transição, a liberação para um novo início. Segundo Sallie Nichols,
“Psicologicamente
falando, muitos de nós vivemos ‘no ar’, aprisionados em torres ideológicas,
feitas por nós mesmos; pois a torre pode simbolizar qualquer construção mental, política, filosófica, teológica ou psicológica, que nós, seres humanos, construímos, tijolo por tijolo, com palavras e ideias. […] A libertação pode assumir a forma de grave doença física ou espiritual, uma mudança violenta da fortuna ou qualquer outro acontecimento cataclísmico […]” (2016, p.284).
O ex-marido é um fantasma, pois ele não aparece no filme. A cena da casa em San Francisco mostra o que ela está deixando para trás. O ato de tirar as flores do vazo é repetido várias vezes no filme. Simboliza a renovação: a destruição do velho e a construção do novo. Frances se muda para um quarto alugado. Esse quarto representa o purgatório, um tipo de transição. Ela se deita no chão em posição fetal, talvez inconscientemente já indicando o caminho para o renascimento, ou a penas a necessidade de amparo e cuidado. O chamado à mudança acontece no restaurante, quando a sua
amiga Patty e sua companheira lhe oferecem uma viagem à Itália. Inicialmente ela recusa, mas quando volta ao quarto alugado e percebe a situação deprimente que está vivendo, decide então aceitar o convite. É o limiar de uma encruzilhada, e ela atravessa esse limiar.
Bramasole
Durante a visita à cidade de Cortona, região da Toscana, Frances observa com admiração o momento em que uma mulher agrada um pássaro em suas mãos, levando-o ao seu rosto em um gesto de intimidade e carinho. Um pouco depois, Frances repara em um anúncio de uma casa à venda na região. Coincidentemente, essa mulher aparece de repente, faz um breve comentário sobre a casa e pergunta se ela iria comprá-la. A mensagem significativa desse encontro ocorre quando Frances fala que comprar a casa seria uma ideia terrível. Lembrando do início do filme quando um aluno dela diz que ela adora ideias terríveis, a mulher misteriosa diz exatamente a mesma coisa: você não gosta delas? Um dos momentos mais marcantes do filme é quando, no decorrer da excursão, o ônibus para justamente na frente da casa, Bramasole. A sincronicidade desperta um sentimento de encantamento, visível na expressão de seu rosto. Esse encantamento representa também o vislumbre de uma conexão espiritual, de uma orientação superior, a sensação de que estamos sendo guiados em determinada direção. Frances decide descer do ônibus e olhar a casa. Ao entrar, ela percebe que a casa está prestes a ser vendida para um casal francês. A dona se mostra hesitante em vender. Pede por um sinal de Deus. Isso acontece quando uma pomba defeca em sua testa. O agente imobiliário, senhor Martini, explica que na Itália o que acabara de acontecer é considerado um bom sinal. Mais uma sincronicidade. Assim, Frances compra essa casa na Toscana.
De acordo com Carl G. Jung, sincronicidade seria “a aparição simultânea de dois acontecimentos, ligados pela significação, mas sem ligação causal” (2014, p.35). Em outras palavras, a sincronicidade representa uma coincidência significativa a qual não pode ser explicada pela relação causa e efeito.
Prosseguindo a narrativa. A casa é simples, relativamente acessível e inicialmente pouco expressiva. A reforma da casa é uma metáfora da reforma da vida de Frances. No início a casa é pouco iluminada. Porém, com o passar dos dias, à medida que ela vai se sentindo à vontade, a casa vai ganhando luz, ganhando vida. Claro que isso não poderia acontecer sem antes ela sentir o característico arrependimento inicial, o famoso “frio na barriga” comum entre pessoas que percebem que compraram algo por impulso. Esse arrependimento de comprador é aliviado um pouco quando ela tem o primeiro encontro com uma imagem de Virgem Maria, uma das figuras maternas mais poderosas que existe. Durante essa primeira exploração da casa, ela percebe uma torneira da qual não sai água. Um símbolo importante no desenvolvimento da estória.
O senhor Martini ajuda Frances na contratação dos trabalhadores que irão fazer a reforma. Se torna, pouco apouco, um tipo de conselheiro, guia, um amigo. Ela observa então um velhinho carregando flores (Mario Monicelli). Enquanto ele troca as flores em um pequeno santuário, ela se pergunta: “Será que ele nasceu aqui?”… “Ele amava alguém aqui?”… “Ele perdeu alguém aqui?”… Ela o cumprimenta, mas ele não responde… Não parece estar curioso a respeito dela, como ela está por ele. Alguns personagens vão ganhado espaço no decorrer da estória. Pawel e Chiara representam a esperança no amor genuíno em contraponto aos rostos carregados de passado que predominaram até então. É uma força sutil que “empurra” a vida para frente, rumo aos sonhos, às realizações, aos encontros e reencontros. A estória claramente começa a nos conduzir para uma transformação da protagonista. Alguns elementos são reveladores. Como por exemplo, a cena da cobra que entra na casa pelas folhagens da janela. A cobra é um símbolo transpessoal da transformação, visto que é um animal que muda de pele e se renova de tempos em tempos. Outro exemplo é uma conversa que ela tem com Katherine, a mulher misteriosa que se torna sua amiga. Katherine diz: “Você tem que viver esfericamente, em várias direções. Nunca perca seu entusiasmo infantil e coisas boas lhe acontecerão” (Fellini). Logo em seguida Frances expressa algumas preocupações durante um diálogo com o senhor Martini.
– “Você é uma idiota. Comprou uma casa para uma vida que você nem tem”.
– “Por que você comprou então?” Pergunta o senhor Martini.
– “Porque estou cansada de estar sempre com medo e porque eu ainda quero coisas… Eu quero um casamento nesta casa… Eu quero uma família aqui…”
– Senhor Martini responde com uma breve história² : “Entre a Áustria e a Itália há uma região dos Alpes chamada Semmering.
É uma área muito alta, na montanha, e muito íngreme. Eles construíram um trilho de trem ligando Viena a Veneza. Eles construíram o trilho antes mesmo de existir um trem para percorrê-lo. Eles construíram porque sabiam que um dia o trem viria”.
Eles não ficam juntos. Eles não são o par romântico da estória. Esta cena no fundo mostra que homens e mulheres podem ser amigos.
Logo ela encontra pessoas para quem possa cozinhar: os trabalhadores da reforma, os vizinhos, o fato é que a comida é um elemento socializante, um fator que constrói laços, mostrando que a ideia de família é na verdade uma construção. Nós construímos nossas famílias independentemente dos laços de sangue.
E assim chegamos a outro momento marcante do filme: a filosofia da joaninha.
Katherine conta uma pequena história… “Quando eu era criança, eu costumava passar horas procurando por joaninhas. Um dia eu simplesmente desisti e adormeci no jardim…
Quando eu acordei, elas estavam em cima de mim”. Temos então uma ponte para o final do filme. Mas, nesse interregno, ainda aparece um flerte com o amor. Uma breve experiência romântica com Marcelo. Porém ele não será seu novo amor.
O Self
Os trabalhadores se tornam sua família, a cena em que ele concluem a reforma é comovente. A contraposição do sorriso com as lágrima. Ela está próxima do Self, mas falta ainda uma prova, a integração definitiva da sombra. O Self na teoria junguiana pode ser traduzido pela expressão “si mesmo”. Abrange o consciente e o inconsciente, representando por sua vez a totalidade da personalidade humana. Ou seja, quando integramos ao consciente os elementos inconscientes da nossa sombra (em poucas palavras, tudo o que não processamos e reprimimos em nós mesmos). Quando as caixas chegam (com livros, etc), é um momento de reencontro com o passado. Ela acaba se decepcionando novamente, a decepção da expectativa, desta vez com Marcelo, o reencontro com a dor.
Quando ela volta para Bramasole, a entrada permanece a mesma, demonstrando que a casa ainda está incompleta. Assim como sua jornada. Após esta cena, ela entra no quarto se sentindo miserável, mas é aqui que tudo pode mudar para ela. É o contato com o sentimento original da dor. Segundo Bert Hellinger, o sentimento primário. O sentimento secundário pode ser a identidade que criamos, a vítima, a esperança de alimentarmos essa identidade para não lidarmos justamente com o sentimento primário (a perda).
Frances luta pela felicidade dos outros mesmo se sentindo infeliz (olhar além do próprio umbigo: a experiência transpessoal). Ela assume Pawell como parte da família para que ele pudesse se casar com Chiara. Ela estava lhe dando a salvação mesmo sem perceber. Os últimos passos para a própria transformação.
A cena final é delicada, principalmente a conversa com o senhor Martini. Ele aponta que os seus pedidos foram atendidos. Há um sentimento delicado, leve, melancólico de chegada. Ela percebe, nesse momento, que tem tudo o que pediu. Ela está atordoada, perplexa.
A cena da joaninha no final do filme: uma vez atingido o sentimento de realização, ela se abre (sem expectativa) para o presente e o Amor aparece… “A casa protege o sonhador”. O velhinho das flores retribui o sorriso. A torneira finalmente funciona, a água que representa o batismo, o renascimento… O sorriso em seu rosto é transcendente. Enfim, a transformação se completa.
¹ Mestre em Antropologia pela Universidade Federal do Paraná. Especialista em Psicologia Transpessoal pela Faculdade Espírita. Professor nos cursos de Psicologia e Direito no Centro Universitário Curitiba, UNICURITIBA.
² É uma história verídica.
Referências
Filme:
Sob o Sol da Toscana. Direção de Audrey Wells. Lançamento no Brasil: 2004.
Livros:
JUNG, Carl G. Sincronicidade. Petrópolis: Vozes, 2014.
NICHOLS, Sallie. Jung e o Tarô: uma jornada arquetípica. São Paulo: Cultrix, 2007.